sexta-feira, 27 de maio de 2011

Presença Constante

Quando tu nasceste eu estava lá te esperando. Teus pais te cercaram tanto que eu nem pude chegar perto de ti. Passei anos me sentindo mal por que quando ficávamos só eu e tu, tu choravas e vinha alguém correndo estragar o nosso momento. Tu tinhas medo de mim. Acho que ainda tens.

Quando cresceste um pouco, foste pra creche, pra escolinha, e eu sempre atrás de ti. Eram raros os momentos em que podíamos ter nosso tempo. Coleguinhas, professoras, pais, muita gente te cansava durante o dia, e a noite quando ias dormir, estavas tão exausto e com tanta coisa na cabeça que nem pensavas em mim, acho que não pensavas em nada.

Uma vez te perdeste num passeio, ficaste apavorado. Eu sempre me senti bem do teu lado, mas tu, sempre que ficavas sozinho comigo entrava em desespero. Não estavas acostumado comigo ainda. Tinhas uns 5 aninhos.

Cheguei a desistir de ti por um tempo. Achei que nunca me notarias. Achei que estarias tão envolvido com família, amigos, colegas, professores, que não perceberias que só eu estive sempre do teu lado. Fiquei te olhando de longe.

Então chegaste na adolescência. Eu continuava incrédula, mas a cada livro que escolhias, a cada momento que ninguém te cercava e tu ouvias uma música triste, eu me enchia de esperança. Te apaixonaste pela primeira vez, e isso foi difícil pra mim. Agora era tudo ou nada, ou me perceberias de vez, ou talvez passasse a vida sem me notar.

Ah, nunca vou me esquecer daquela noite. Puseste a cabeça no travesseiro, e finalmente percebeste, estavas sozinho! Só comigo.

Descobriste pela primeira vez a minha existência. No início eu te machucava bastante, tu tentaste te livrar de mim várias e várias vezes. Todos tentam. Ninguém consegue de verdade.

Não importa que te cerques de amigos, que te afundes nos estudos, que te escondas atrás de pilhas enormes de pastas num escritório minúsculo num prédio com milhares de salas. Eu sempre sei onde tu estás, e sempre estou do teu lado.

Houve algo engraçado nisso tudo. Em determinado momento tu achaste que tinhas me vencido. Hilário. Descobriste as drogas. E por um tempo funcionou. Não posso dizer que não me senti largada por uns meses, mas uns meses somente, nada mais do que isso. Durante este tempo vivias tão bêbado que não me ouvias sussurrar, e quando deitavas, no teu momento mais vulnerável, logo dormias e parava de me dar ouvidos. Deixei que te iludisses.

Deverias ter visto a tua cara no dia que eu retornei. Tu bebeste tanto aquele dia. A cada dose que bebias eu vinha mais forte, e tu bebendo mais e mais pra ver se eu sumia. Estavas revoltado, eu te entendo. Fico feliz que tenhas percebido que não adianta se esconder atrás de anestésicos, eu sempre volto e cada vez mais forte.

Escrevo essa carta pra mostrar a minha satisfação por teres aceitado o fato de que estarei contigo pra sempre. Agora tu até tens bons momentos comigo! Mas entendas que se me trocares por alguém, quando este alguém se for, e tu ficares só comigo de novo, eu hei de me vingar pelo abandono. Lembras como me deixaste por causa daquela garota, uma simples mortal?! Está certo que te sentias com ela como nunca te sentiste com ninguém, muito menos comigo, mas ela não estava do teu lado 24 horas, como eu.

Tenha sempre em mente que eu sou egocêntrica e vingativa. Sempre que estiveres pensando em outra que não em mim, é aí que vou te machucar mais. Estamos entendidos?

Não te esqueças que eu vou estar te observando quando leres esta carta, e não te esqueças também que é comigo que tu vais dormir hoje à noite.

Atenciosamente,


Solidão.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Bons tempos em que eu escrevia assim.

O vento trespassa as paredes finas

do meu ser

através das fendas

da vergonha e do arrependimento.

Sinto o cheiro podre da existência.

A perspectiva assustadora

da natureza humana.


Me rasga o murmúrio da brisa

que, sutil, sussurra

os crimes da alma,

a justiça invisível

que não existe

neste mundo calado.


Pior que a brisa é o silêncio.


Escuta.


Vê que crueldade paira

entre olhares,

entre bancos de praças vazias,

paradas como as estátuas

que nos julgam

com olhos estáticos

de mármore.

São tão frias quanto nós mesmos,

entretanto, cultuam o não-ruído,

o não-sentir.

Cultuam os poemas não escritos,

as lágrimas não derramadas

de um amor não vivido.


Enquanto o balançar das folhas

emana o canto torturante

do que poderia ter sido.


Felizes os monumentos:

imponentes, quietos.

O não-fazer,

o não-pensar,

o não em si.


A negação da vida.


Combinam com o ar cinza

os versos que seus olhos dirão

a um poeta bêbado,

solitário e frio.


Metálico:


como o cobre,

como a modernidade,

como a lâmina que se opõe à carne.


O sabor do sangue

que corre na veia da humanidade

mancha a imponência,

evita a indiferença

das esculturas.


Felizes imortais.

Pedras frias que não respiram

a poluição,

a hipocrisia,

a dor.


Assistem a tudo

parados e calmos,

resignados em sua solidão.


Não sangram.

Não sentem.

Não passam pelo suplício

de estar vivo.


Sentem pena de nós,

simples sofredores.

Solidarizam-se por nós poetas

sem nos entender direito.

Não entendem

o que é efêmero,

mas sentem dor.


Se prestares atenção,

verás lágrimas

nos olhos das estátuas,

por assistirem às nossas vidas,

por estarem cercados

de mediocridade,

e por flores

cujo perfume

o vento não ousa espalhar.


Seria falso.

Seria inconcebível

perfumar tal cinza,

perfumar tal dor.


Contradição.


Beleza e lágrima.

Amor e sofrimento.

Poesia e realidade.


Eu e o mundo dentro de mim

contra o mundo de todos,

contra os sorrisos,

contra os olhos brilhantes,

contra os beijos

e contra os amantes.


Procurando o corte.

A acidez árdua da fala.

O sarcasmo imbecil

da desilusão

que voa com o vento

que a contra-gosto

dissemina o luto

às pobres estátuas.


Conta aos inocentes silenciosos,

aos inocentes imóveis,

aos inocentes estáveis,

as lágrimas de chumbo

que caíram do peito

de um sofredor:

alvo dos querubins

e dos anjos perversos,

que nos buscam

do paraíso da ignorância

e nos jogam no desespero

do saber

e do viver.


Lei sádica esta

que nos prende ao chão

e não nos permite

recitar versos

com a constância

do ar que se move triste

pelo mundo,

pelos ouvidos,

pelos olhos masoquistas

de quem lê um poema,

em frente a uma estátua,

em uma tarde ventosa

de primavera.

Ah, as festas.

Uma festa.
A atmosfera densa
de fumaça cinza.

O peso das notas
sobre meus ombros
ardia sem ritmo.

O único peso do qual
poderia lembrar
era do teu corpo
sobre o meu.

O único som
que escutava
eram os murmúrios
teus.

Todo teu.

Meu corpo em êxtase
movia-se, cansado.
Procurava um descanso
que estava longe:

tu, teu corpo e nosso silêncio.

Mais um poema ruim.

Minha dor é sempre formal

apresenta-se, explica suas razões,

justifica-se pedante, me deixando

de mão atadas, e sem sequer

a possibilidade de abrir os pulsos.


Então abro a cabeça, nego

essa racionalidade irrefutável

de quem sabe a que veio

e não abre mão, de acabar

com os sorrisos injustificáveis.


Ponho minha venda, meu analgésico

meu fones de ouvido de ausência

e assim não vejo nem escuto,

de bom grado, o escândalo da dor.


Só quem me protege fielmente

nessa guerra insuportavelmente real

são meus arcanjos esquecidos tortos:

o álcool, o silêncio e a escuridão.


Por isso só e sem nenhuma fé,

bebo o ouro que opõe a carne

toco a sinfonia que opõe o nada

e escuto o cinza que se espalha;


Ainda assim fraquejo sobre meus pés

enquanto tremo em frio ensolarado.

Não suporto a pesada leveza triste

de ser só mais uma existência falha.



Devaneio no Aeroporto de Brasília

Não se sabia mais quando sairia o voo. A neblina encobria o aeroporto de Curitiba e o caos aéreo estava instaurado. Do saguão ensolarado do aeroporto de Brasília observava voos que levantavam e desciam, nenhum de Porto Alegre. Chegara cedo ao aeroporto, e como bom gaúcho, mau acostumado com mulheres lindas em todos os lugares, pensou “por que não no aeroporto?”. Pequeno detalhe: estava em Brasília.

O atraso do voo começava a incomodar cada vez mais a medida que aquela gente feia passava por ele. Até que passou aquela loira, linda, curvas dignas da estrada pela qual se sobe a serra. Infelizmente não significou nada. Logo atrás veio aquela tia, gorda, com grande parte do cofrinho aparecendo e a outra parte (mais as pernas) amassadas cheia de celulite em uma calça apertada.

Que desespero. Os aviões contentavam-se em ficar lá fora. Olhou mais uma vez o monitor: Porto Alegre ainda atrasado, sem previsão de partida. Foi tomar uma cerveja.

- Quanto é a Skol?

- R$ 4,50.

Olhou a carteira: uma nota de cinco, uma camisinha já com jeito de velha e um extrato da conta bancária assinalando que não se podia gastar dinheiro. Ainda mais cinco reais em uma cerveja.

Passaram mais algumas mulheres horríveis antes que ele decidisse sair. Ia beber, definitivamente. Saiu do aeroporto, foi a um mercadinho deplorável que havia ali por perto. Escolheu a pior cachaça (no calor!). R$ 5,50. Foi até o balcão

-Tenho R$ 5,00 e uma camisinha velha.

Levou a cachaça. Voltou ao aeroporto. Nada ainda. Dirigiu-se a área onde era permitido fumar, acendeu um cigarro e abriu aquela cachaça terrível. Aquela loira passou de novo, e agora já semi-bêbado abriu um sorriso. O aeroporto de Curitiba ainda fechado, a cachaça aberta e só mulheres feias. Era o quadro da dor na moldura do desespero. Bebia.

Quando a cachaça acabou, começaram a passar só mulheres lindas, todas lhe sorriam e ele sorria de volta.

-Agora que tá tudo ótimo vai liberar o aeroporto, quer ver?-

Foi. A moça simpática do alto-falante anunciou: aeroporto de Curitiba reaberto. Olhou no monitor, Porto Alegre com previsão de saída dali a duas horas.

Dinheiro não havia mais, as mulheres voltavam a ser feias e a camisinha tinha ficado com o dono do mercadinho. Uma tristeza só. Sentou num banco na área de fumantes, ligou o notebook, procurou uma rede e nada. E vocês acabaram de ler o resultado de tudo isso.

Querubim

O enxofre preenche

cada vazio da alma

e cada estrela

que não está em mim.


Os insetos murmuram cantos,

satânicos e atraentes,

musicais como o tilintar

de taças despedaçadas.


Sou a antítese eterna que

precede qualquer pretensa verdade.

A hipocrisia que precede cada jura.

A crueldade que precede o afago.


Me afogo

no fogo.


Não fujo.


Somente finjo

que sou um anjo.


E no desarranjo de versos

absurdos e perversos

me revelo, eu:


Cristo crucificado,

demônio-cupido;

sofrimento sujo:


um querubim caído.

Contrarrevolucionário - Parte I

Acordei em um apartamento desconhecido. A única coisa familiar que havia por ali era o pôster do Che me olhando da parede. O cinzeiro cheio ao meu lado exalava ainda o alcatrão da noite passada. As várias garrafas vazias denunciavam a razão do terrível mal-estar que me assolava. A luz chegava aos meus olhos como lâminas e a minha vontade era não sair daquela sala, nem sequer me levantar do chão. Ainda assim, decidi descobrir onde estava, e como chegara ali.

Fui até o quarto e identifiquei alguns rostos nos corpos que se amontoavam em colchões mal arranjados. Ninguém relevante. Alguns flashes me voltaram da noite anterior e fui forçado a me perguntar por que dormira sozinho na sala, e não com os outros no quarto. Isso ainda era uma incógnita. Retornei à sala.

Avistei uma poltrona com furos de cigarro mas que ainda aparentava ser muito confortável. Lembrava algo como a poltrona em que meu avô se sentava enquanto me contava as histórias da guerrilha da qual havia participado na época do regime militar. Com gestos largos, típicos do gringo que era, me exaltava a luta, exaltava a revolução socialista que um dia ainda haveria de ser feita no Brasil e da qual eu participaria para seu orgulho.

Che me olhou com reprovação. Não sei se era ele ou meu avô que me olhava daquele quadro tortamente pendurado naquela parede cinza e decadente. A reprovação surgia do fato de que a revolução não seria feita, e se fosse eu não seria parte dela. Sorte que meu avô não estava mais aqui para partilhar esse desgosto comigo.

Fui até a cozinha, abri a geladeira. Nada. Uma garrafa de vinho ruim, aberta, com aparência de velha era a única coisa que sobrara naquele assoalho pálido. Juntei a garrafa e fui até o cinzeiro procurar algum cigarro apagado prematuramente. Me sentei por ali de novo.

Admirava o quadro como quem admirava uma existência metafísica. Ali estava o mundo reformulado que a cada gole de vinho se tornava mais vívido. As esquinas tomadas pelo povo, as armas em punho, eu no meio da multidão gritando discursos incitantes com um alto-falante disponibilizado por um sindicato que havia aderido à luta. Viajei longe.

Voltei pro apartamento triste. Nenhum cigarro do cinzeiro estava em condições e o olhar fixo do meu avô, pendurado na parede me afligia cada vez mais. Fui até ao quarto e revirei os bolsos daqueles que estavam vestidos. Achei uma carteira de cigarros e quando reparei na cômoda ao lado da cama, percebi algumas trouxas de cocaína. Juntei-as.

Chegando à sala com o vinho já pela metade, estiquei algumas linhas no vidro quebrado de uma mesa velha. Uma, duas, três seguidas. Estava com fome e não havia nada além do vinho por ali. Olhei minha carteira: vazia.

Agora já um pouco mais desperto, reparei no velho toca-discos que parecia decepcionado de estar ali, desapercebido, a algum tempo. A agulha gasta ainda fazia seu papel. Olhei a coleção de discos empoeirada que havia ali em baixo. Led Zeppelin destoava da jovem guarda. Algo de música clássica. Chico Buarque. Botei um velho disco do Raul.

Mais alguns goles de vinho, mais algumas linhas e eu me sentia fraco. Não só fisicamente. Reconhecia pela primeira vez, no quadro da parede, a minha fraqueza. A minha irrelevância e a leveza inerente a tudo isso. Flutuei por alguns instantes naquela sala fria, fechei os olhos e não sei precisar se morri ou se desmaiei.

Sei que quando abri os olhos, lá estavam eles, os dois, conversando cada um na sua poltrona...